Pular para o conteúdo principal

Postagens

AS MAL AMADAS

              Virgínia e Anália são idosas, mas não admitem, juntas têm mais de cento e quarenta anos, mas juram não passar de cem. Anália, por exemplo, é aquela que não quis ir pra Maracangalha com Caymmi. Ainda que antigas, têm hábitos modernos, gostam de andar aos domingos na grande avenida, desde que a prefeitura a reservou para passeio público. Por mero acaso, ou por constar do plano universal, também este narrador resolveu passear na mesma avenida neste domingo.             Verdade que elas têm hábitos modernos, mas não deixaram de conservar alguns antigos, entre os quais um que não é tão inocente: falar mal dos outros. Ah, todos sabemos como esse costume pode fazer mal aos outros, mas como faz bem aos praticantes! É um descarrego, um lava-rápido da alma. Inda mais se quem fala mal são duas senhorinhas de soma centenária. Qual prazer têm elas nessa etapa da vida, que lembra um toco de vela bruxuleante e não mais as fogueiras da juventude? Vós, que sois moços, e que se queimam c
Postagens recentes

UMA MOÇA DE OLHOS BONITOS

              Tempos de pandemia! Usar máscara é de lei, e todos a levam no rosto cobrindo nariz, boca e queixo. Apenas os olhos ficam a descoberto.             Em uma manhã não tão bela acordei de uma noite mal dormida. Tivera frio, vômitos e febre. Os sobreviventes hão de lembrar que, quando a variante Ômicron chegou, ela se espalhou como fogo em rastilho de pólvora; parecia que todo mundo ficava doente. Por isso, com toda razão, pensei comigo: estou infectado; vou fazer o teste! Estando o mundo inteiro também a se infectar, faltavam testes.             Agarrei o telefone e pesquisei as farmácias do bairro. Em uma delas, das menores e mais escondidas, havia possibilidade de realizar o teste, mas só depois das quatro da tarde. Agendei para quatro e meia. Voltei para a cama e fiquei na aguarda.             Às quatro horas começou a chover, às quatro e quinze o céu caía, e às quatro e meia cheguei com o carro em frente da farmácia, carregando também comigo o dilúvio. Abri um guard

MANHÃ NA PRAIA

              O sol dardeja seus raios duros sobre as águas adormecidas do mar. Atravessam eles a superfície inerte e vão caindo no abismo. De início conservam o brilho de origem, mas, cada vez mais fundo, vão esmaecendo até se amalgamarem ao escuro absoluto de uma noite eterna.             O mar sem vento não ondeia e, assim parado, é sonolento e esquecido; esqueceu-se de bem refletir o céu azul claro, inteiramente despido de nuvens. Parece que, atordoado do sono, prefere deixar chegar à superfície de suas águas a escuridão de seu fundo. Veste-se, então, de uma roupagem que pinta de preto o azul emprestado do céu.             Este mar morto, de olhos fechados, ainda que os tivesse abertos, não veria voar em seus ares ave alguma. Aves gostam de vento, e como não os há, foram voar em outras paragens. Faz calor e o céu sem graça sente a falta dos pássaros fugidos. Toda essa placidez, contudo, é enganosa; nas águas médias do mar fervilha a vida, milhões de espécies a se agitar, a nada

UM PLANETA ESPECIAL

              O amante de coisas belas certamente o será também de um céu estrelado. Para melhor vê-lo será necessário fugir da iluminação das grandes cidades, que mata o céu. Prefira uma noite sem luar, quando estrelas brilham mais. Em nossas latitudes austrais é fácil ver o Cruzeiro do Sul, desde criança nosso conhecido. Então é só olhar para a esquerda da cruz e serão vistas duas estrelas tão brilhantes como as do Cruzeiro; não a que está mais perto, mas a outra, é a mais brilhante da constelação do Centauro e, por isso recebe o nome de Alfa. É ela a mais próxima de nossa especialíssima estrela, o amado Sol.             Quando olhamos para o céu vemos as estrelas como unidades luminosas, mas isto é falso, nem sempre elas são unas, às vezes são duplas ou até múltiplas. Nós as vemos como unidades devido à espantosa distância em que elas estão de nós. Dois ou mais astros que ali podem estar, somam suas luzes como se fossem de uma única fonte. Este é, precisamente, o caso da Alfa Ce

A VIDA

  (Oração aos moços)             Esses moços! Pobres moços! Ah se soubessem o que eu sei... Não sabem o que a vida lhes reserva. O sol quente do verão será um sol frio no inverno. O viço das flores do jardim dura pouco, logo fenece. É o tempo que passa, é a vida que corre e o amanhã logo vira ontem. Mas afinal, o que é a vida? Diga lá meu irmão. Eu, quando jovem, subia as escadas pulando os degraus de dois em dois; agora, me apoiando no corrimão, claudico ao descê-las e subo arfante. O cancioneiro antigo e o seresteiro moderno, ambos cantam com entusiasmo as cores de sua aquarela... que descolorirá.             Viver é perigoso, diz e repete o Riobaldo. Viver é preciso, digo eu, contrariando o lema de Sagres: navegar não é preciso; viver é preciso. A vida, com suas agruras e sofrimentos, valerá a pena? Só se a alma não for pequena.             A vida não passa de um microscópico ponto-fora-da-curva na imensidão inimaginável que nos acostumamos a chamar de Universo. O Cosmos é for

JARDIM DE VIOLETAS

              O azul brilhante das pequenas violetas são pedaços refletidos do céu de meio dia. O sol lambe guloso as pétalas frágeis, aqueles coraçõezinhos tenros, lambe com pressa, com sofreguidão, pois sabe que logo mais aquela nuvem invejosa virá encobri-lo e lançar sombra em toda a praça; com ela trará uma brisa fresca que soprará sobre as flores, lenitivo àquela paixão maluca, que mais fere do que acaricia.             O canteiro de violetas é um dos quatro plantados, dois de cada lado do caminho de pedras brancas que liga a porta da igreja ao início da rua Quinze. São canteiros quadrados, e ao lado das violetas está o das margaridas. Separando os dois, outro caminho das mesmas pedras portuguesas, este mais estreito.             Neste calor de sol a pino poucas pessoas estão fora de casa. Se um observador estrangeiro de repente acordasse num banco desta praça, veria poucas pessoas transitando e imaginaria estar em alguma aldeia espanhola, na hora da sesta. Sabemos nós, porém,

DESAJUSTADO

              Sonhar é normal, dizem médicos e filósofos, e não fazem mais que repetir o que sempre nos disseram nossas vovós. Há quem sonhe com o futuro, como será, e já então se pode distinguir duas espécies, os otimistas e os pessimistas, ambos normais se não caírem no exagero, que sempre é indício de desarranjo. Outros costumam sonhar com o passado, e creio que são a maioria. Também estes, se escorregarem pela rampa do exagero, serão igualmente desajustados. É o que tem acontecido comigo nos últimos tempos, escorregões, o que me leva à triste conclusão: sou um desajustado. Já vinha desconfiando disto antes mesmo de voltar a ter sonhos. Creio que todos passam por períodos sem sonhos, embora os entendidos afirmem que sonhos sempre os há, o que falha é a memória da pessoa que, despertando, deles não se lembra. Dizem mais, esses especialistas, que os períodos em branco costumam ser passageiros e a gente normal volta dos sonhos a se recordar. Disto concluo que sou normal, dado que depoi